*SPOILER* Primeiro capítulo de A Duquesa de Paus
Bom dia, leitoras.
Ontem eu fiz uma brincadeira no instagram. Estabeleci uma meta de 110 ebooks vendidos na pré-venda de A Duquesa de Paus. Se atingíssemos essa meta até domingo (amanhã), eu liberaria o primeiro capítulo inteiro de A Duquesa de Paus.
Bem, vocês bateram a meta quase que no mesmo dia! =)
Agorinha mesmo chegamos a 110 ebooks vendidos e eu, como prometido, vou compartilhar o CAPÍTULO PRIMEIRO do livro A Duquesa de Paus com vocês.
ATENÇÃO! Se você não gosta de spoiler nem quer ler uma parte antes do todo, não prossiga por aqui. Feche o e-mail e vá tomar um café =)
A DUQUESA DE PAUS
CAPÍTULO PRIMEIRO
Livro de Tatiana Mareto
Música do capítulo:
Londres, agosto de 1877
Dia do aniversário de casamento
“Maximus Octavius Cadden, você aceita essa mulher como sua esposa e promete amá-la, honrá-la e protegê-la até que a morte os separe?”
Aquela era a pergunta mais difícil que ele responderia em toda a sua vida. Maximus nunca seria capaz de amar alguém. Estava fascinado. Encantado. Enfeitiçado por uma maldição qualquer que o fazia venerar o chão que aquela mulher pisava.
Mas amor?
O amor era um sentimento estúpido para o qual ele, felizmente, não era equipado. Mas a mulher à sua frente não merecia um casamento sem amor.
Ele deveria deixá-la ir. “Liberte-a”, diria a voz em sua consciência, se ele tivesse uma. Vestindo branco e com um halo de luz iluminando seus cabelos avermelhados, ela parecia um anjo. Casar-se com ela era contaminá-la com toda a sua podridão, mas não havia nada que ele pudesse fazer.
Maximus não costumava negar a si aquilo que desejava.
“Sim. Eu aceito.”
As ruas de Covent Garden não eram perigosas logo após o por do sol, por isso Maximus não suspeitou imediatamente dos homens estranhos por quem Calliope passou. Afinal, eram apenas homens feios e mal-encarados. Ele apostava que sua esposa não fazia aquela rota com frequência, portanto nenhum deles estaria ali por ela.
Certo?
Mas ela estivera o dia inteiro investigando sobre o grupo que sequestra crianças. Fizera perguntas capciosas para moleques de rua e pagou alguns deles para que fossem seus olhos e ouvidos nas tavernas e becos de Shadwell, Bethnal Green e Whitechapel. Gangues de criminosos não gostavam muito de pessoas enxeridas — mesmo que a pessoa em questão fosse uma duquesa.
Por isso, ele não se surpreendeu quando três homens armados com facas entraram na frente da carruagem dela e assustaram os cavalos. Um deles usava um tapa-olho e portava um sorriso desdentado. Outro segurava uma bengala que se assemelhava a uma espada, provavelmente roubada de algum aristocrata. O terceiro desfilava com um casaco vermelho e azul, um dos maiores atentados à moda que Maximus já vira.
Ele, que rondava a uma curta distância, parou sua montaria imediatamente. Não havia muito tempo para tomar uma decisão. Sua pistola estava carregada e as duas facas, afiadas. Mas seu estado debilitado não lhe permitia uma luta corpo a corpo justa. Se desmontasse e partisse para cima dos bandidos, teria que enfrentá-los com um joelho que não sustentava seu peso e quadris com mobilidade prejudicada.
Mais dois homens se aproximaram. Nenhum deles portava arma de fogo — não à vista. Eles também não pareciam usar o símbolo de nenhuma gangue conhecida, ou seja, uma vantagem. Criminosos independentes não eram bons lutadores.
— Saiam da frente — o cocheiro disse. Maximus o reconheceu como sendo Peters, um dos homens que trabalhava para o ducado quando da sua morte. Era ainda jovem e leal. — Vocês estão obstruindo o caminho de Sua Graça.
— Nós sairemos quando Sua Graça passar todo o dinheiro que estiver carregando — o Sr. Tapa-Olhos exigiu. Ele tinha um sotaque forte do norte. — Dinheiro e tudo de valor que ela tiver.
Aquele foi um erro do qual o meliante se arrependeria. De dentro da carruagem, era impossível identificar se Sua Graça era um homem ou uma mulher. Se ele sabia, era porque não se tratava de um mero roubo. E, se não era um mero roubo…
A porta do veículo se abriu e sua esposa saiu, batendo firme no chão enquanto segurava um punhal na mão direita. Ele se aproximou com o cavalo, mantendo-se nas sombras enquanto observava. Calliope tinha uma expressão de puro tédio e os olhos verdes flamejavam sob a pouca luz da lanterna da carruagem.
Tão linda quanto no primeiro dia em que ele partiu o seu coração.
— Lamento, senhores, mas eu não vou lhes dar absolutamente nada. — Ela girou o punhal nos dedos. — Pedirei que se retirem para que eu possa seguir meu caminho. Caso contrário…
— O que você vai fazer, docinho? — O Sr. Tapa-Olhos, que demonstrava ser o líder, a interrompeu. Outro erro. — Vai gritar? — Com alguns passos adiante, ele chegou bem perto de Calliope. Seu pior erro, até então.
Sem hesitar, sua esposa segurou o braço do homem, girou-o e o prendeu nas costas. Ele gritou no momento em que ela enfiou o punhal em sua coxa, fazendo sangue jorrar e molhar a calça escura.
— … eu serei obrigada a machucá-los — ela disse, entre os dentes. — Agora você aprenderá a nunca interromper uma mulher quando ela estiver falando.
Os outros quatro homens sacaram suas armas e atacaram, todos ao mesmo tempo. Uma turba descoordenada, que provocou o cocheiro a descer e se colocar do lado de sua dama. Maximus respirou profundamente. Aquele era um péssimo momento para estar desacompanhado de seus mercenários.
Como poderia adivinhar? Quando saiu de seu esconderijo, naquela noite, não esperava uma situação complexa daquelas. Ainda era cedo para revelar-se a Calliope e aquele não parecia o melhor momento para um “minha querida, estou vivo”.
Mas ele não podia deixá-la enfrentar o perigo sem interferir. Com um salto não muito elegante do cavalo, Maximus mancou até onde os malditos tentavam agredir sua esposa, mirou em um deles e disparou.
O estrondo fez com que os cavalos se agitassem. Um dos bandidos caiu, gritando. Logo, uma poça de sangue se formou debaixo dele — que experimentaria uma morte rápida, se tudo desse certo. Mais alguns passos vacilantes levaram Maximus até Calliope, porém ela não prestou atenção nele. Ao contrário. Com um movimento firme de seu punho, desferiu um golpe na direção dos outros três homens que os cercavam.
Ele estava em desvantagem graças às suas limitações motoras. Com a mão esquerda, usou uma faca longa para afastar o delinquente enquanto Calliope e o cocheiro Peters lutavam com os outros dois. Seu oponente era durão, mais jovem e com todos os membros funcionando corretamente, mas Maximus conseguiu desarmá-lo depois de sofrer algumas escoriações.
Peters, no entanto, teve mais dificuldade em livrar-se do meliante — o Sr. Bengala Elegante. O cocheiro recebeu um empurrão e caiu ao chão. Sua arma rolou para baixo da carruagem e os cavalos, já bastante alvoroçados, quase saíram em disparada. Levantando às pressas para acalmá-los, foi atingido por um soco. Calliope tentou ajudá-lo e, em um segundo de distração, quase recebeu um golpe.
Maximus se colocou entre ela e o agressor, amortecendo a batida do punho do Sr. Casaco Vermelho. Eles se atracaram e rolaram pelo chão imundo e fedendo a urina. O combate durou alguns minutos até que Peters se recuperou e atingiu o bandido com a bengala do comparsa.
— Oh, mas que bagunça! — Calliope resmungou. — O senhor está bem?
Ele não soube o que dizer.
Aquela era a primeira vez que olhava dentro daqueles olhos depois de muito tempo ansiando por revê-los. Calliope sempre teve uma força interior capaz de mover montanhas e derrubar obstáculos se eles estivessem em seu caminho. Ela o deixava de joelhos e Maximus morria de medo disso.
Morria. No passado.
Ele daria qualquer coisa para se ajoelhar diante dela, nem que fosse por uma última vez.
— Milady, temos que ir — Peters disse. Ele sempre foi um criado zeloso. — Estamos expostos.
— Claro, nós vamos. — Ela estendeu a mão para Maximus. Os dedos delicados apontaram em sua direção. Sem luvas. Pela primeira vez, em muito tempo, ele também não soube o que fazer. — O senhor precisa cuidar desses ferimentos. Venha comigo.
Não.
Ele não deveria aceitar.
Seguir a esposa para qualquer lugar era um erro gravíssimo. O manto da noite garantia que sua identidade se mantivesse escondida. À luz das lamparinas da Mansão Melinoe, ela o reconheceria. Não havia dúvidas disso.
Sem contar que eles tinham acabado de ser atacados por um grupo organizado. O Sr. Tapa-Olhos, que continuava gritando enquanto segurava a perna e tentava estancar o sangramento, tinha sido contratado — e ele tinha quase certeza de quem estava pagando para que assustassem Calliope.
Ainda assim, ele se viu aceitando a gentileza e segurando aquela mão tentadora enquanto erguia sua carcaça encardida.
— Ajude-o a subir — ela ordenou para o cocheiro. — Vamos para a Mansão Melinoe, rápido.
Ele não a amava.
Calliope teve a certeza de que o marido se casara com ela por uma mera conveniência depois da noite de núpcias. Quando consumaram o casamento e ele derramou a sua semente sobre os lençóis. Não, a certeza veio depois que ele a encarou com uma agonia imensa e deixou o quarto. Nu.
Ela se sentou na cama e chorou. Acabara de experimentar um prazer incrível pelas mãos do homem por quem estava apaixonada. O homem que aceitou como marido, que escolheu para ser seu parceiro de uma vida inteira. Ele a fizera sentir o que Calliope não imaginava ser possível sentir e então a abandonara sem dizer nada.
O que ela esperava?
Afeto, claro. Que ele a aconchegasse nos braços e sussurrasse palavras de conforto em seus ouvidos. Que a beijasse e a fizesse dormir, embalada por sua respiração. Pelo cheiro masculino de suor e sexo que ficara na cama. Calliope estava pronta para dedicar todo o seu amor àquele casamento, mas seu marido não corresponderia.
Havia uma chance, não havia? Ela conhecia mulheres que se casaram por conveniência e cujos maridos se apaixonaram perdidamente por elas com o tempo.
Sim, o tempo. Maximus não a amava agora, mas poderia amá-la no futuro. Se ela desse tempo a ele, talvez pudesse conseguir o seu final feliz.
Aquele que sua mãe não conseguiu.
Sua mão doía e a manga direita do vestido estava arruinada, mas Calliope não teve nenhum ferimento naquela noite. Ainda assim, foi uma noite assustadora. Ela não esperava ser atacada por criminosos naquela região. Era incomum que uma gangue de ladrões cercasse a carruagem de uma duquesa em Covent Garden, o que a fez suspeitar de um ataque organizado.
Era a única explicação plausível e ela adorava a plausibilidade. Fazia muitos anos desde que ela fora uma sonhadora incorrigível com uma estranha fé em tudo e todos. Aquela mulher morreu. Foi assassinada lentamente, decepção após decepção, até não existir mais nada dela. Calliope adotara a prudência e a moderação como modelos de vida.
E ela estivera investigando pessoas muito perigosas, naquela tarde. Depois de acender uma vela pela alma de Maximus na Capela St. George — afinal, aquele era o dia do seu aniversário de casamento —, ela foi atrás de seus investigadores em Shadwell para obter informações sobre a quadrilha de sequestradores. Uma coincidência incrível que, logo em seguida, cinco homens a atacassem.
Não existiam coincidências.
Tão logo a carruagem parou na entrada principal da Mansão Melinoe — um nome ridículo dado por seu falecido marido para a residência londrina da família —, Peters abriu a porta para que ela descesse. Foi quando ela percebeu que o cavalheiro que a ajudara estava com várias feridas superficiais no rosto e nas mãos e mal conseguia ficar de pé.
— Mande chamar o Dr. Corrigan — ela ordenou para John, o lacaio que os recebeu.
— Não é necessário — o cavalheiro disse, apoiando-se na carruagem. — Eu estou bem, apenas um pouco dolorido.
— O senhor está ferido. — Calliope fez um gesto com as mãos e John se aproximou do homem para ajudá-lo. — Permita-me ao menos oferecer um uísque e alguns curativos.
Ele assentiu. Estava visivelmente enfraquecido e sentindo dor enquanto era conduzido pelos criados até a biblioteca, o lugar mais claro da residência. John o colocou sentado diante da lareira e se abaixou para atiçar o fogo. A noite estava apenas fresca, porém ela preferia manter os ambientes aquecidos.
— Mande Hector providenciar água quente, bandagens e fenol, além de uma refeição substancial para nós dois — ela ordenou outra vez. — Peça que Bettina traga o tônico de camomila e reforcem a vigilância. Nós fomos atacados.
John franziu as sobrancelhas.
— Devo chamar Lorde Asher e Lorde Moreland, milady?
— Não, não devemos preocupá-los por enquanto. Faça o que pedi e seja rápido.
O criado assentiu e saiu em disparada. Calliope acendeu algumas lamparinas, providenciando mais luz, e olhou para o homem que trouxera de Covent Garden. Paralisou. Ele estava com a cabeça apoiada nos punhos e a luz alaranjada do fogo clareava o lado esquerdo de sua face.
Os cabelos eram escuros, quase pretos, e ele tinha ombros largos e braços fortes, perceptíveis mesmo por debaixo de várias camadas de tecido. Uma cicatriz, que descia das têmporas até os lábios, marcava seu rosto. Era um ferimento antigo, já plenamente cicatrizado, e que fora causado por algo muito afiado.
— O senhor está bem? — Ela serviu uma dose de uísque e se aproximou dele. — Tem certeza de que não precisa de um médico?
O homem ergueu os olhos e a encarou. Calliope prendeu a respiração. Havia algo naquele olhar que a fez mergulhar em seus pesadelos mesmo estando acordada.
Ela conhecia aquela cor.
Conhecia aqueles rajados de verde que se misturavam com o azul límpido e formavam uma matiz única.
Mas aqueles olhos estavam mortos havia dois anos.
— Não preciso. — Ele se levantou. Calliope deu um passo para trás. — Mas nós devemos conversar sobre o ataque de hoje, Callie.
Apenas uma pessoa a chamava de Callie.
Essa pessoa também estava morta havia dois anos.
— Como o senhor sabe meu nome?
— Ouvi seu cocheiro mencionar?
A resposta soou como um alerta. Peters nunca se dirigiria a ela informalmente. O homem era empregado dos Cadden desde ela se casara com Maximus e sempre a tratou com reverência e respeito.
Ela puxou o punhal que ficava escondido em suas costas, sujo do sangue de seus agressores, e apontou para o estranho.
Porque ele era um estranho. Qualquer outra hipótese que pudesse acometê-la naquele momento era puro delírio causado pela tensão.
— Não ouse debochar de mim. De onde nos conhecemos?
Ele sorriu. Uma covinha profunda surgiu em sua bochecha direita. O homem aprumou o corpo e franziu o rosto em uma expressão de dor.
— Nós nos conhecemos há muito tempo, mas eu era outra pessoa na época.
— Como assim, outra pessoa?
O homem levou a mão direita ao bolso e retirou um objeto brilhante.
— Hoje eu sou Lisandro Anstey, ao seu dispor. — Ele fez uma reverência masculina e desajeitada, demonstrando que manter-se de pé lhe causava certo sofrimento. — Mas já fui o homem que transformou a sua vida em um inferno. Aquele que foi embora antes mesmo de partir e está enterrado na propriedade da família Cadden. Sou eu, Callie. Max.
As palavras a feriram como se fossem pequeninas adagas. Todas atingiram Calliope no peito, causando um estrago muito maior do que qualquer investida de seus prévios agressores. Como ela não reconheceu imediatamente aquela voz? Sim, ela estava mais rouca, mas a elegância poética de seu marido permanecia.
Seu coração disparou. As batidas ecoavam no silêncio da biblioteca enquanto ela procurava por outras provas visuais da ressureição de Maximus. O homem estendeu a mão em sua direção e ofereceu o objeto metálico que retirara do bolso.
Um anel.
Ela ergueu o braço para impedi-lo de se aproximar, mas o estranho não estava fazendo nenhum avanço. Ao contrário. Parado diante da poltrona onde se sentara minutos antes, ele parecia esperar que alguma coisa acontecesse. Que ela recebesse uma clarividência ou que um raio os atingisse.
— Eu não acredito no senhor. — Calliope deu outro passo para trás. — O que quer de mim?
— Você acredita, sim, porém imagino que seja difícil aceitar. — O homem jogou o peso do corpo para a esquerda e fez uma careta. — Serei objetivo porque você não gosta de floreios: eu sei quem vocês estão investigando. Sei quem está por trás do ataque de hoje e, por isso, voltei para ajudá-los.
Ah, ele estava errado. Não era difícil aceitar que Maximus estivesse vivo, porque ela nunca reconheceu o corpo — em estado avançado de decomposição — e não havia qualquer testemunha do crime que o vitimara. Ninguém sabia muito bem o que acontecera com o Duque de Greystone naquele fatídico outubro em Paris.
Calliope era uma mulher prática. Dois anos depois de ser devastada pela perda do marido, conseguia afastar as emoções conflitantes que prejudicavam sua razão e admitir que todos os eventos envolvendo a morte de Max eram muito suspeitos — mesmo que sua cabeça estivesse fervilhando de teorias da conspiração naquele momento.
O inadmissível, que ela não podia aceitar, que fazia seu coração bombear sangue e ódio para cada pedacinho de seu corpo, era que, não estando morto, ele não tivesse voltado para casa.
— Não sei do que o senhor está falando, porém adianto que não preciso de sua ajuda. Agradeço o que fez hoje e peço que vá embora.
Ela apontou para a porta. Seu braço erguido tremia, mas Calliope se recusava a demonstrar qualquer fraqueza diante de qualquer pessoa. O homem se limitou a encará-la com o semblante resignado.
— Callie.
Ele murmurou seu nome.
— Meu marido está morto — sua voz saiu como um sibilo raivoso. Ela tinha muita raiva represada dentro de si.
— Sim, ele está. Eu não sou o homem com quem você se casou, Callie. Não mais.
Não era possível. Talvez tivesse batido a cabeça durante a luta e estivesse sonhando. Delirando.
A porta da biblioteca se abriu e Bettina entrou com uma bandeja com sanduíches, chá e vinho. Atrás dela vinha Melinda, com o tônico de camomila, as bandagens e o jarro de água fumegante. Ela esperou que as criadas arrumassem tudo enquanto observava o não mais tão desconhecido assim à sua frente.
Além da cicatriz em sua face, havia outra em seu pescoço — exposta pelo colarinho esgarçado em razão do combate. Ou aquele homem sofrera um terrível acidente ou alguém tentara matá-lo. O terno elegante que ele vestia — e que estava severamente danificado — era uma forma de esconder um corpo ferido e provavelmente cheio de marcas. Olhando atentamente, Calliope percebeu que o desconforto que ele demonstrava ao ficar de pé deveria vir de ferimentos mais profundos.
As linhas de exaustão e dor no rosto bonito só confirmavam que ele sofrera muito. Continuava sofrendo. Emoções à parte, se ela não duvidava que Maximus pudesse estar vivo, não duvidava também que aquele homem ali pudesse ser ele.
As criadas saíram e o silêncio que permaneceu era quase insuportável.
— O que você está fazendo aqui? — Calliope nem reconheceu a voz estridente que saiu de sua garganta. Também não identificou as lágrimas que rolaram por seu rosto. Piscou várias vezes para afastá-las, secá-las, silenciá-las. Não conseguiu. — Por que você voltou?
Ele baixou a cabeça e suspirou. Daquela distância, podia ver seu peito subir e descer em uma cadência incômoda. O sorriso murchara nos lábios carnudos e o homem voltou a olhar dentro dos olhos dela.
Calliope prendeu a respiração mais uma vez. Aqueles eram definitivamente os olhos de Max. Olhara dentro deles por muitas vezes, procurando qualquer resposta para as perguntas que nunca fez. Procurando explicações, tentando compreender por que ele não a amava como ela o amava.
Em todas as vezes, Calliope sentiu apenas decepção.
O gosto amargo da rejeição continuava em sua boca.
— Porque eu sou um maldito egoísta — Maximus, ou qualquer que fosse o nome daquele homem, respondeu. — Permita-me auxiliá-la, Callie. As pessoas que vocês estão enfrentando não são criminosos comuns. Eu não imaginava que você chegaria até eles, ou que eles chegariam até você, mas aconteceu e eu posso ajudar.
Com a cabeça zonza e o coração retumbando como uma tempestade, Calliope decidiu pegar o objeto que ele ainda lhe oferecia. O anel de sinete era dourado tinha uma uma inscrição já bastante gasta no topo. A frase estava quase ilegível, porém ela sabia o que significava.
Pascere daemones.
Ela cambaleou para trás desabou sobre uma poltrona de estampa florida.
— Eu me perguntei por muitos meses se o tinham matado para roubá-lo. — Calliope colocou o anel na mão espalmada e o admirou. — Seus amigos não acreditavam nisso. Também não acreditaram na versão oficial, a que você sofreu um acidente em Paris. Cassius mantém um investigador atrás de respostas até hoje, mas, toda vez que ele chega a uma pista…
— É um beco sem saída — ele a interrompeu e levou a mão para pegar o anel. A pele rude de seus dedos grossos e feridos encostaram em sua palma e Calliope sentiu um formigamento que se espalhou por todo o seu corpo. — Ninguém nunca descobrirá o que houve se eu não quiser.
A porta de biblioteca se abriu em um estrondo e Richard entrou. Ele segurava uma bola de pelos nas mãos e parou no meio do caminho quando viu a mãe acompanhada. Calliope sentiu uma necessidade urgente de agarrar seu filho e sair correndo com ele dali para afastá-lo do perigo.
Estava sendo tola. Richard não estava em perigo. Aquele era o pai dele, afinal.
Céus.
Aquele era o pai do seu filho.
Seu coração batia mais forte do que durante o confronto nas ruas de Covent Garden. Ela tinha todas as evidências à sua frente, mas ainda não sabia se acreditava nele. Calliope não costumava acreditar em ninguém que não merecesse a sua confiança. Mas era impossível que ele estivesse mentindo. Aquela voz… por Deus, a voz! Parte dela ainda se recusava a admitir a traição.
Ele estava vivo e a deixou pensar que morrera. Não voltou para casa. Não se importou com seus sentimentos, assim como não se importara nenhuma das outras vezes.
Não. Max era distante, frio e por vezes cruel, mas ele não a deixaria sofrer deliberadamente por dois anos, deixaria?
Ah, ele deixaria.
Maximus Cadden estava vivo.
Canalha!